O STF e o fim do fiador: os riscos para a locação comercial

O julgamento de um recurso extraordinário pelo plenário do STF está agitando o mercado de locação: na pauta está a proibição da penhora do único imóvel do fiador no aluguel comercial. As imobiliárias temem perder parte de seus clientes, pois a grande maioria dos pequenos comerciantes são fiadores de seus negócios e terão dificuldade para recorrer a garantias pagas. Por outro lado, players do ecossistema imobiliário que já criticavam a funcionalidade da figura do fiador dizem que a iniciativa do STF irá modernizar o mercado. O Imobi Aluguel ouviu todos os lados para explicar e destrinchar este imbróglio. O Supremo Tribunal Federal (STF) está levando a julgamento a proibição da penhora de imóvel único do fiador na locação comercial. A matéria, que é objeto de um recurso extraordinário, mexe com as estruturas do mercado imobiliário e pode causar impactos profundos no segmento, especialmente entre pequenos comerciantes. Em 2010, a maioria dos ministros das duas turmas do Supremo decidiu que o imóvel único do fiador pode ser penhorado, tanto em locações residenciais quanto nas comerciais. Porém, em junho de 2018, a Primeira Turma da Corte determinou, no julgamento de um caso específico ocorrido em São Paulo, que esse tipo de penhora é inconstitucional em locações comerciais. Por maioria de votos, os ministros da Primeira Turma acolheram o pedido do recorrente, que alegou que era o responsável pelo sustento da família e que o imóvel era impenhorável por ser sua única propriedade. Aludindo à proteção do direito fundamental e social à moradia, ele conseguiu reverter o leilão da casa onde morava, em Campo Belo (SP). Os ministros Dias Toffoli, relator do caso, e Luís Roberto Barroso entenderam que a penhorabilidade do bem de família é possível tanto na locação residencial como na comercial. “A possibilidade de penhora do bem de família do fiador – que voluntariamente oferece seu patrimônio como garantia do débito – impulsiona oempreendedorismo, ao viabilizar a celebração de contratos de locação empresarial em termos mais favoráveis”, afirmou na ocasião o ministro Barroso. Em contrapartida, o ministro Marco Aurélio Mello defendeu em seu voto que não se pode potencializar a livre iniciativa em detrimento de um direito fundamental, que é o direito à moradia. Os ministros Luiz Fux e Rosa Weber acompanharam essa visão, estabelecendo maioria pela impenhorabilidade. Divergências na Corte Suprema Desde então, a Primeira e a Segunda Turmas do STF têm divergido da questão, ora admitindo a possibilidade de penhora do imóvel único do fiador na locação comercial, ora determinando sua impenhorabilidade. Sem uniformidade nas decisões, a questão lotou os escaninhos da corte máxima: desde maio de 2020, foram admitidos 146 recursos extraordinários com tema semelhante, contando apenas os oriundos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).Para resolver o impasse e garantir a aplicação uniforme da Constituição, o ministro Luiz Fux, relator de um desses recursos extraordinários RE/1307334, sugeriu que para resolver a controvérsia fosse adotada a sistemática da repercussão geral - ou seja, o resultado deste novo julgamento irá valer para todos os casos e processos semelhantes. Os ministros acataram por unanimidade a sugestão de Fux.A possibilidade de um novo entendimento do STF sobre o tema fez ao menos nove entidades ligadas ao mercado imobiliário entrarem com pedido de amicus curiae (terceiro interessado, que ganha o direito a se manifestar no processo) desde que a repercussão geral foi aprovada. Dentro dessas mesmas manifestações, houve também solicitações de audiência pública para que o assunto seja discutido com mais profundidade na Corte. Com isso, o julgamento do RE 1307334 ainda não tem data agendada. O que pode mudar no mercado? Os Secovis, associações de administradoras de condomínios e as próprias imobiliárias têm reagido com vigor à possibilidade de restrição ao uso do fiador nas locações comerciais. Em manifestação conjunta enviada ao STF em março, os Secovis de São Paulo e do Rio de Janeiro ressaltam que “a fiança é garantia largamente utilizada nas locações comerciais e depende da penhorabilidade do bem de família, usualmente o único com dimensão suficiente para validar a garantia”. Apontam, ainda, que “são livres os interessados para optarem ou não pela fiança (uma das quatro modalidades de garantia previstas na lei das locações)”. Em outro requerimento oficializado junto ao Supremo, o Secovi do Distrito Federal alega que, caso o entendimento da lei seja alterado, “haverá significativo aumento do custo locacional para micro e pequenos empresários que, muitas das vezes, sequer possuem confortável fluxo de caixa para gerir seus negócios”. Os argumentos dos Secovis refletem fielmente a visão das imobiliárias de locação: o fim do fiador na locação comercial irá inevitavelmente encarecer o aluguel, retirando parte dos pequenos empreendedores do mercado. Fiador: tradição brasileira A polêmica figura do fiador, embora venha gradualmente perdendo espaço, ainda é, de longe, a garantia locatícia mais usada no País. Segundo o Secovi-SP, estão alugados 51% dos imóveis não residenciais do país, como edifícios de escritórios, imóveis de uso logístico e industrial, galpões isolados, pequenos e médios comércios e shopping centers, entre outros. Destes contratos, 78% são garantidos por fiadores. Outra pesquisa, realizada mensalmente pelo Secovi-SP e que abrange somente a cidade de São Paulo, mostrou em fevereiro de 2021 que 45,5% dos contratos de locação (tanto residenciais quanto comerciais) têm o fiador como garantia; outros 35% recorrem à caução e 15,5% optam pelo seguro-fiança. O grande fator que pesa a favor do uso do fiador é o custo - trata-se da única garantia gratuita prevista em lei. As imobiliárias temem que, diante desse desembolso adicional, muitos pequenos comércios migrem para espaços mais baratos, mudem o atendimento para o virtual (se o tipo do negócio permitir) ou, simplesmente, fechem as portas. Segundo a Lello, uma das mais ativas vozes dentre as imobiliárias contra as restrições ao fiador, uma mudança no entendimento do STF poderá minar pequenas empresas, num momento em que o empreendedorismo é uma saída fundamental para o atual cenário de desemprego. “No final das contas, haverá dois prejudicados: os locadores com contratos em vigência, que acreditaram nas regras do jogo; e os locatários, que não vão poder mais contar com essa espécie de locação prevista na lei”, afirma a advogada Moira Toledo, ex-diretora jurídica e atual diretora de risco e governança da Lello (ouça abaixo a íntegra da entrevista dela ao Imobi Aluguel). PODCAST DO IMOBI ALUGUEL 3 perguntas para Moira Toledo Diretora de Risco e Governança da Imobiliária Lello A advogada comenta os impactos de uma nova decisão do STF sobre a penhorabilidade do imóvel do fiador sobre o mercado de locação e questiona a insegurança jurídica causada pela reavaliação de um tema já pacificado: “não há razão para reapreciar a matéria sem um fato novo”. Clique e ouça! Percalços das demais garantias Para o mercado, a locação comercial caminhará para a extinção do fiador e o seguro-fiança se consolidará como principal modalidade, caso o STF mude o entendimento sobre a penhora. Porém, as imobiliárias apontam que as locações comerciais têm mais dificuldade de fazer seguro-fiança porque quem começa o negócio, normalmente, não tem um histórico para apresentar. “As seguradoras são bem mais rigorosas com o empreendimento comercial. Elas costumam cobrar de 2 ou 3 aluguéis por ano, valor superior ao da locação residencial. Se a lei mudar, esse empreendedor terá que arrumar um fiador com 2 imóveis, o que é muito difícil”, aponta o diretor de locação da Anagê Imóveis, de Joinville (SC), Patrick Manteuffel Alves da Silva. Outra alternativa é a caução, bastante usada nos mercados de São Paulo e dos Estados do Nordeste. Nela, o inquilino desembolsa uma quantia na largada do aluguel, que retorna a ele ao final do contrato. Porém, o pagamento é limitado por lei a apenas três aluguéis, fatia insuficiente para cobrir o risco de inadimplência e danos ao imóvel. Um problema adicional é que o recebimento dos valores da caução costuma ser desgastante. “A caução é muito frágil como garantia, tendo em vista a demora dos processos judiciais nas ações de despejo”, aponta Fernando Prates, diretor de locação da Imobiliária Prates, que administra 500 imóveis comerciais em Curitiba, com ticket médio de R$ 3 mil. Uma terceira garantia locatícia prevista em lei é o título de capitalização, cujo valor pode ser estipulado livremente entre as partes. No mercado, cobra-se, em média, o equivalente a 12 meses de aluguel - mas neste caso o impeditivo é justamente o impacto desse montante nas contas da empresa. “Esse valor é inviável ao comerciante, que precisa de dinheiro para capital de giro, não para pagar aluguel. Na prática é um custo adicional para quem está começando”, diz Patrick Silva, da Anagê. Há um quarto tipo de garantia permitido pela Lei do Inquilinato, a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento, mas, por causa da complexidade, não se conhece um único caso no País em que a modalidade foi utilizada, segundo o Secovi-SP. Outro lado: as críticas ao fiador O embate jurídico chega no momento em que o mercado imobiliário já discutia a funcionalidade da figura do fiador em todos os tipos de locação. Uma mudança de comportamento do consumidor, cada vez mais prático, avesso a burocracias e refratário à ideia de pedir favor a alguém, já vinha indicando que as garantias pagas terão seu espaço garantido. O rápido crescimento da Credpago é uma amostra da ascensão dessas novas modalidades de garantia. A empresa trouxe mais opções ao mercado ao construir um algoritmo que é assertivo na identificação dos bons pagadores e ágil para aprovar clientes, quase instantaneamente. Também contribuiu a segurança oferecida pela Credpago em caso de inadimplência, que é coberta pela própria empresa - ou seja, ela mesma faz o papel do fiador. E, se o fiador tradicional é seu maior “concorrente”, é natural que a Credpago veja com bons olhos a possível mudança de entendimento do STF sobre esse tipo de garantidor. Para Carlos Nogueira, diretor comercial da empresa, o fiador de pessoa jurídica não é uma boa prática para o mercado. “Imagine que boa parte da população seja fiadora de restaurantes, por exemplo. Vamos tirar todas essas pessoas de suas casas porque o segmento está quebrando com a pandemia? Não há lógica nisso”, afirma. Nogueira argumenta também que o fiador é uma ilusão, e aponta a dificuldade para que imobiliárias exerçam uma fiscalização ou controle dos ativos de quem se apresenta como garantidor. “Se você não gravar o contrato de locação junto ao cartório de registro de imóveis, o fiador pode trocar a titularidade e a imobiliária fica sem garantia. Quantas pessoas fazem isso?”, pergunta. Para ele, o movimento natural é o mercado precificar cada seguro conforme o risco associado ao segmento correspondente, além, claro, das condições específicas daquele inquilino. “Se o setor todo está bom, há um custo menor. É assim que funciona um mercado maduro”, afirma Nogueira, que diz que o valor do seguro numa locação comercial oscila de 2% a 25%, conforme o setor e a capacidade da empresa. A visão contrária à figura do fiador é compartilhada por outros novos players do mercado. O QuintoAndar, por exemplo, há um bom tempo foca boa parte de seu marketing na crítica a esse recurso na locação residencial. “O fiador é a pior forma de garantia possível, tanto para o proprietário, como para o inquilino. É um retrato antigo da burocracia, análogo a pegar dinheiro com agiota. Não é sustentável, nem bom para o mercado” disse André Penha, cofundador e diretor de tecnologia do QuintoAndar, ao jornal O Globo. O Imobi Aluguel procurou o QuintoAndar para falar sobre o tema, mas a empresa não quis se manifestar. Correta ou não sob o ponto de vista jurídico, a disputa travada no STF carrega o benefício de aprofundar o saudável debate sobre as modalidades mais convenientes de garantia locatícia disponíveis hoje. E caberá às imobiliárias seguir avaliando as condições do mercado neste momento especialmente delicado, em que a locação comercial vislumbra um excesso de oferta de imóveis com a popularização do home office, inclusive no pós-pandemia. Notícias da Locação Aluguel de piscinasA onda de economia compartilhada chegou às piscinas privativas. Na esteira do sucesso da americana Swimply, que cresceu 3.300% na pandemia, a brasileira Dovizin lançou uma plataforma que intermedia o processo de locação de piscinas por hora. O site impõe uma hora entre reservas para garantir tempo para o anfitrião higienizar o espaço, além de mencionar protocolos rígidos sobre biossegurança. Segundo a Dovizin, o Brasil é o segundo país do mundo com maior número de piscinas (3 milhões), atrás apenas dos EUA (10 milhões). A empresa planeja chegar a 2.500 anfitriões cadastrados até o final do ano em todo o País. Inadimplência no aluguel segue caindoMesmo com o recrudescimento da pandemia da Covid-19, a inadimplência nos aluguéis de imóveis residenciais e comerciais de São Paulo encerrou o mês de março em apenas 1,82%, menor índice desde abril do ano passado. Os dados são do Índice Periódico de Mora e Inadimplência Locatícia, medido pela Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo (AABIC). Já o indicador que mede a falta de pagamento da taxa de condomínio foi de 2,18% em março, o menor patamar registrado para este mês desde o início da medição, em 2004. Bom senso na pandemiaPara o presidente da AABIC, José Roberto Graiche Júnior, o baixo índice de inadimplência mostra que o bom senso e as negociações, geridas pelas administradoras, entre proprietários e inquilinos prevaleceram em meio a crise econômica causada pela pandemia. Ele afirma ainda que a crise sanitária fez com que os condôminos valorizassem o local onde vivem e os serviços prestados nos empreendimentos. CorreçãoNa edição passada do Imobi Aluguel, em trecho da declaração da advogada e sócia da CUPOLA Denise Vieira onde se lê “o locatário, ao final dos 9 meses de contrato, usou o artigo da lei que lhe permitia continuar no imóvel e obteve êxito na Justiça para ficar no apartamento”, o correto é “o locatário, ao final dos 9 meses de contrato, usou o artigo da lei que lhe permitia continuar no imóvel e não obteve êxito na Justiça para ficar no apartamento”. Indicadores Acesse a página especial organizada pelo Imobi Aluguel com os principais indicadores ligados ao mercado de locação: IGP-M, IPCA, Fipe/ZAP, IVAR, QuintoAndar e outros: Indicadores Imobi Aluguel.

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