Trabalhar no imóvel residencial alugado é legal?
Resumo
Jaques Bushatsky reflete se trabalhar no imóvel residencial alugado é legal e quais as possibilidades que os novos tempos apresentam.
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Infringe o contrato de locação o locatário que trabalhar no imóvel residencial? Afinal, é muito séria a previsão de que o uso será “residencial” e o desrespeito acarreta a rescisão do contrato, por culpa do locatário. Este é tema que certamente será cada vez mais discutido e, podemos até nos espantar, mas não nos é admitido fechar os olhos para isso.
Afinal, nenhum de nós desejará imitar o Rei Luis XVI que no dia 13 de julho de 1789 escreveu em seu diário o que via acontecer ao seu redor: “rien”, nada. Singelamente ele não enxergou a tremenda evolução revolucionária a tal ponto e há tanto tempo avolumada que, no dia seguinte, levou à queda da Bastilha, símbolo da Revolução Francesa. Tentemos enxergar!
Pois bem. O IBGE constatou que na Região Sudeste, de 2017 para 2018, passou de 1,4 milhão para 1,8 milhão de pessoas trabalhando em casa (isso não inclui os empregados domésticos). Indica-se que o Brasil seja o terceiro país do mundo onde mais cresce o home office, método até pelo Estado praticado – e preconizado, quando sequer se imaginava possível a pandemia que mais recentemente forçou as pessoas a ficarem em casa. Ou seja, para muitos, ou se trabalha em casa, ou não há trabalho. E é óbvio, nem todos trabalham em casas próprias e sim, alugadas.
Realmente, sociólogos, economistas, profissionais de recursos humanos, especialistas em direito laboral discutem, há tempos, a transformação das relações de trabalho. A interconexão fácil e constante, as novas necessidades de produção, a economia, as novas especialidades, a globalização e a nova partilha de afazeres entre as regiões e os países, a valorização crescente do trabalho intelectual estão em pauta, mostrando que o profissional pode ser, muitas vezes, tão (ou mais) eficiente em casa quanto nos escritórios da empresa. E a Peste que nos maltrata desde março de 2020 evidenciou isso com rigor.
Em consequência, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) desde 2011, prevê que “não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego”. E para viabilizar essa nova relação, dispõe que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio” (art. 6º).
Logo, a legislação trabalhista acompanhou a evolução sócio econômica, deu efetiva primazia à realidade.
Sabemos, então, que as pessoas mais e mais trabalham em casa. Mas, “trabalhar em casa” pode ser entendido como “residir”, como o é “descansar”, “jantar”, “dormir” etc.?
Em outras palavras: é moderno e legal trabalhar fora do ambiente tradicional empresarial; a CLT regula a matéria; as empresas e os empregados querem agir assim; quem mora em casa alugada estaria fora dessa revolução sócio econômica?
É simples perceber que a definição de “residência” como se vinha ultimamente entendendo englobava o estar e os atos conexos tais como pernoitar, descansar, ter lazer, realizar as atividades inerentes à satisfação das necessidades básicas da pessoa, mas não encampava claramente o trabalho, talvez até diante da origem semântica: “residir” vem do latim “residere”, que significa “parar, deter-se, estar ocioso”. Ora, onde se “para”, não se “trabalha”.
Entretanto, convém anotar quão natural é a alteração do uso dos espaços em geral e, em particular, da residência, e consequentemente, da compreensão de sua definição (ou do seu significado) com o passar dos anos ou séculos: na Roma antiga, a casa abrigava a família e também era um santuário; as coisas mudaram e no Brasil colonial, o imóvel podia englobar num só corpo, a moradia, os espaços para hóspedes, até mesmo a moenda e o engenho; mais tarde, se passou a diferenciar peremptoriamente o bairro (e o imóvel) residencial do comercial; até hoje temos “cemitérios de campanha” compondo fazendas com esta destinação evidentemente estranha à produção; mais recentemente, a legislação urbana tem preconizado a coexistência de usos e atividades diversificados, compatíveis entre si com o uso residencial, evitando-se a segregação dos espaços, diminuindo os deslocamentos. Enfim, procura-se, sempre, a vida mais saudável para todos e essa busca se faz de maneiras diferentes, a cada época.
Desprendendo-nos do vocábulo significante e nos atentando ao seu significado, identificaremos grande amplitude no termo “residência”, que já englobou o exercício de várias atividades, a exprimir as modificações qualitativas dos seus padrões e elementos que a caracterizam.
Mas afinal, é legal trabalhar em um imóvel locado?
Nesse contexto, como ficam as locações residenciais: o contrato sofrerá agressão se o inquilino trabalhar no imóvel locado? Penso que não.
Parece solucionar-se a questão com a aplicação do que venha a ser o uso normal da propriedade, certo que na lição de Hely Lopes Meireles (1917 – 1990) em seu clássico Direito de Construir: “a normalidade se afere em cada caso, levando-se em conta a utilização do imóvel, a destinação do bairro […]”, vindo à pelo o esclarecimento de Waldir de Arruda Miranda Carneiro, focado nos incômodos: “Será anormal, portanto, a utilização da propriedade que ultrapasse os limites dos incômodos que devam ser tolerados pelo homem comum, penetrando na esfera do dano ao sossego, à saúde ou à segurança dos vizinhos” (em seu Perturbações Sonoras nas edificações urbanas).
Tenhamos claro que aqui não se defende o mau ou abusivo uso, jamais admitido e que merecerá, sempre, repulsa. Muito antes do nosso Código Civil (2002), Machado de Assis (1839 – 1908) já escrevera em uma crônica publicada em 1864: “… o direito de propriedade tem limites, não se deve confundir com o arbítrio de torná-lo escarro em parede limpa, foco de infecção, ninho de arganazes, baratas, lacraias e minhocas”, conforme Miguel Matos pesquisou (em Código de Machado de Assis).
Assim, o critério para sabermos se é ou não normal o uso residencial, estaria não no que se faz, mas no que emana do uso: barulho, trânsito, odores etc.
Ou seja, se não agredir, não perturbar, a atividade será admitida. Nada diferente de atividades tradicionalmente residenciais, que merecerão censura se dela emanarem danos ou afrontas a direitos.
Como solução do impasse que decorreria de classificar-se como residência somente o local em que “a pessoa está parada, permanece nas horas de descanso ou a ela vai para fazer suas refeições e dormir”, visto que lá trabalhar seria proibido, persegue-se uma razoável nova interpretação, mantida a necessidade de atendimento à expectativa de uso do imóvel em moldes atuais e não àquela de décadas atrás.
Dessa forma, é fundamental a contemplação prática desses novos costumes ou necessidades, até porque, diga-se, as pessoas já estão há algum tempo agindo desse modo.
Em resumo: a evolução dos costumes, da tecnologia, das necessidades e dos desejos sociais integram, obviamente, novos modos de morar e de usar os imóveis. Também integram o modo de interpretar atos, regras, palavras, contratos.
Diante dessa evidência, para serem atendidas as necessidades e as metas dos moradores, será necessário elaborar novas cláusulas contratuais explicitando a possibilidade do trabalho na residência, ou então, lendo e compreendendo os contratos já existentes de novo modo, contemporâneo e coerente com os usos e costumes atuais, tudo com as razoáveis cautelas, exatamente para que os locatários possam usar e gozar plenamente de suas propriedades, com isso remunerando os locadores.
Portanto, como lidar com o home office no imóvel residencial? Olhando-se de frente para essa evolução das práticas e costumes, acatando-se essa crescente necessidade dos moradores e interpretando-se com contemporaneidade os diplomas legais e os contratos, com atenção ao momento histórico. Jamais poderemos escrever em nossos diários: “rien”.
Jaques Bushatsky
Jaques Bushatsky é advogado, foi Procurador do Estado de São Paulo e Juiz do TIT/SP por dois mandatos e chefiou a Procuradoria da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Coordenador de Locação e Compartilhamento de Espaços na Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SP. No SECOVI – SP (Sindicato da Habitação) é membro do Conselho Jurídico da Presidência, Diretor de Legislação da Locação, Coordenador do PQE e Pró Reitor da Universidade corporativa.
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