Preservar o “bem de família” suntuoso, o crédito ou a palavra dada?
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Este dilema, entre privilegiar a proteção ao bem de família (abrangido o imóvel residencial próprio e todos os equipamentos ou móveis que o guarnecem) do devedor ou dar maior relevo à sua promessa de pagar e de garantir tal pagamento, é antigo, na verdade.
O apoio à palavra empenhada remonta a Salomão, o rei bíblico, que há 3.500 anos alertava: “filho meu, se ficaste por fiador do teu próximo, se te empenhaste por um estranho, estás enredado pelos teus lábios; estás preso pelas palavras da tua boca.” (Provérbios 6:1-5). Na época, anota-se por apego à precisão, “fiador” não tinha o significado hoje atribuído, estritamente sob o aspecto legal, ao termo. E a garantia tem valor, graças à boa fé que deve ser preservada em todos os negócios e aos mecanismos de execução.
De seu turno, garantindo a proteção ao bem de família, temos legislação (Lei n° 8.009/90), tradicionalmente julgada prevalente e que, por característica maior, tem a sua efetividade imediata, independentemente de procedimentos ou atos do Proprietário, em moldes portanto diferentes e mais simples do que o sistema previsto para essa proteção no Código Civil (art.1.711 e seguintes) (art. 70 e seguintes do Código revogado).
No que interessa agora, essa proteção é excepcionada, resume-se, nas situações de (i) obrigação de pagar ao credor pelo financiamento da construção ou aquisição do imóvel; (ii) para pagar hipoteca do imóvel; (iii) decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Mas, por vezes o residente promete pagar e não o faz; em outras oportunidades, dá em caução o seu imóvel (o que não se confunde, evidentemente, com a fiança em locação imobiliária, a hipoteca, o financiamento), para garantir débito, sobrevindo a amarga dúvida: essa promessa frustrada de pagar e, com maior rigor, essa outorga de garantia (caução) se sobreporia à legal impenhorabilidade do bem de família? Na prática: a caução de bem residencial, morada do proprietário, de nada valeria?
Em se privilegiando a impenhorabilidade, afasta-se um capital de montante quase incalculável (a soma dos valores de todos os imóveis em que residem os seus proprietários) da possibilidade de garantir (circunscrevendo a garantia ao bem e não estendendo o risco de penhora a todo o patrimônio – situação da fiança) os compromissos de interesse do proprietário.
Sim, é de capital que se cuida, invertido em bem imobiliário, mesmo que usado como residência pelo proprietário. A respeito, a definição do economista Thomas Piketty (O Capital no século XXI): “O capital é definido como o conjunto formado pelo capital imobiliário (imóveis, casas), utilizado para moradia, e pelo capital financeiro e profissional (edifícios e infraestrutura, equipamentos, máquinas, patentes etc.) usado pelas empresas e pela administração pública. (…).”
E, ter, dá ao proprietário, sem sombra de dúvida, “a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa”, prevê o art. 1.228, do Código Civil. Lógico, há de poder contratar e assegurar pagamento com a sua propriedade.
A par do exercício de uma das faculdades compreendidas pela propriedade, outro aspecto, aquele detectado por Salomão: e a palavra dada, a promessa do proprietário de, com esse bem, garantir o pagamento de débito? Aceitá-la e depois a dar por inválida feriria, se pouco, todo e qualquer conceito de boa-fé, abalroando o sistema de crédito (prometer e não pagar findaria permitido…).
Mais: se o credor acredita na palavra dada pelo proprietário de um bem, sabedor que quem pode o mais poderá o menos, ou seja, quem pode vender pode dar em garantia, seria correto prejudicá-lo com a surpresa da proibição da penhora?
Nesse cenário, interessa a notícia de que as compreensões sobre esse dilema têm evoluído. Após trinta anos de intocável certeza de impenhorabilidade desde a promulgação da Lei 8.009/90, hoje os elementos de cada caso têm sido crescentemente sopesados em prol da concretização da Justiça.
Por exemplo, é a situação do credor que já buscou recuperar um crédito polpudo e se deparou com a inexistência de valores ou bens do devedor, que entretanto é dono e reside em imóvel de alto padrão, imune à penhora por se tratar de um bem de família, nos termos do artigo 1º, da Lei 8.009/90.
Considerando que o valor da dívida represente apenas uma fração do valor do imóvel, autorizar a penhora e a venda do bem, quitando a dívida e resguardando uma parcela do valor para o devedor adquirir outra residência, resulta numa decisão harmoniosa em que se preservaria o direito do inadimplente e, ao mesmo tempo, permitiria a satisfação do credor, alcançando-se o equilíbrio social.
Nesse sentido, já é possível identificar julgados em que o TJSP aplica este entendimento e dispõe que a proteção legal não recai sobre um imóvel específico, mas sobre o direito a uma moradia digna, de forma que a existência de bem de família legal não pode resultar em prejuízo desproporcional ao credor.
A Desembargadora Maria Lucia Pizzotti relatou um acórdão em que se concluiu que a impenhorabilidade legal devia ser mitigada, pois era imóvel de luxo e alto padrão, com valor de mercado consideravelmente superior ao valor da dívida. No caso específico, foi ordenada a hasta pública, mas foi destinada a metade do produto alcançado ao próprio devedor, para que assim pudesse “adquirir outro imóvel para albergar a si e a sua família”. Com a outra metade se quitaria o débito perseguido (TJ-SP 20746392820188260000 SP 2074639-28.2018.8.26.0000).
Em outro caso, relatado pelo Desembargador Castro Figliolia, foi definido que “não se pode permitir que a proteção [ao bem de família] seja desvirtuada de modo que possa vir a servir de blindagem de grandes patrimônios em imóveis de elevadíssimo valor”. E concluiu poder o imóvel suntuoso, ainda que reconhecido como bem de família, ser penhorado, reservando-se parcela do valor que venha a ser obtido em leilão ao devedor, para que ele compre outro imóvel e deixe pago o débito.
Diga-se, essa compreensão se mostra coerente com a própria lei: malgrado incluídos os equipamentos, móveis, as benfeitorias na proteção, são excluídos da impenhorabilidade “obras de arte e adornos suntuosos”, seja por não comporem a moradia, seja porque protegê-los configuraria flagrante afronta ao corrente senso de Justiça. Por que então se protegeriam as residências portentosas?
Assim, parece que cresce um novo, e correto, entendimento ao assegurar não apenas o direito à moradia, previsto no artigo 6º da Carta Magna (moradia que não se confunde com imóvel residencial próprio), mas que também traz segurança a credores, coibindo o que passou a ser entendido como abuso do benefício contido na Lei 8.009/90.
Há muito a ser repensado, alerta-se: o Superior Tribunal de Justiça (proclamadas vênias à sua compreensão) remanesce firme na defesa da impenhorabilidade do bem de família (exceto nas hipóteses expressamente liberadas pela lei), como pode ser analisado nos acórdãos referentes à oferta de caução imobiliária, relatados pelo Ministro Antonio Carlos Ferreira (AGINT.RESP 2046734 SP 2023/0004602-0) e pelo Ministro Marco Buzzi (RESP 1789505 SP 2018/0344105-2).
Por certo, a nova compreensão deverá ser legislada para ser efetiva, o que talvez esteja para acontecer, em futuro não tão distante.
Essa tendência, acredita-se, ao limpar um certo ranço que com o correr dos anos atingiu a matéria da penhora do bem de família: (i) se coaduna com, ao menos, parte da lógica que afastou a inconstitucionalidade da penhora que até há pouco alguns alegavam presente; (ii) eleva adequadamente a força da palavra empenhada; (iii) tem dado prevalência à responsabilidade plena, sem fugas; (iv) tem mantido a possibilidade de o Devedor que num mau ou arriscado passo comprometeu seu patrimônio, continuar morando dignamente (embora já não na riquíssima residência que pudesse possuir); (v) respeita profundamente o direito do credor; (vi) respeita e incentiva o crédito, através da crença na sua satisfação.
Enfim, que valha a palavra dada. Até porque “O que se não pode dar logo não se há de prometer”, na lição do Padre Antonio Vieira (1.608 – 1.697).
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