Smart city e cidades responsivas: uma conversa sobre a vida nas cidades
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Segundo a ONU, até 2030 91% da população formada por 208 milhões de pessoas deverão morar em cidades. Para lidar com o adensamento populacional, surgem alguns conceitos: smart cities, cidades responsivas, inteligentes e planejadas. Mas o que são esses conceitos e como o mercado imobiliário pode explorá-los? Para discutir esse tema, a jornalista do Imobi Report Ana Clara Tonocchi conversou com Rodrigo Werneck, CEO e estrategista-chefe da CUPOLA, Lucas Obino, CEO da Ospa, e Susanna Marchionni, CEO da Planet Smart City no Brasil. Confira os destaques:
Ana Clara Tonocchi: O que é uma smart city?
Susanna Marchionni: Quando falamos em smart cities, a primeira coisa que vem à cabeça das pessoas é tecnologia. Eu sempre gosto de falar que a tecnologia é o meio, mas não o fim. O fim é sempre o mesmo: as pessoas.
Quando falo de pessoas, falo de inclusão social, educação, cultura, engajamento e, automaticamente, de empoderamento. Uma cidade precisa de infraestrutura, serviços, economia compartilhada, mas sempre com um fim único: pensar nas pessoas. Talvez parece esquisito associar smart cities só a essa palavra, mas para mim realmente é isso. Cidades inteligentes precisam de moradores inteligentes.
Ana Clara: Lucas, você pode explicar um pouco o conceito de cidades responsivas?
Lucas Obino: O que vemos é que as cidades responsivas são muito mais baseadas em livre iniciativa, nos novos modelos de negócio, a partir de modelos de planejamento setorizados. É muito baseado em indivíduos e em dados, e como isso tudo interage, através de crowdsourcing e outras formas de colaboração. Por exemplo: quando a Nokia começou a investir em sensores de tráfego, investiu quase 10 bilhões de dólares há uns 10 anos para tentar chegar perto da Apple, que tinha recém-lançado o iPhone, muito querendo centralizar conhecimento, informação sobre cidades e sobre uso de dados. Mais ou menos na mesma época, estava surgindo o Waze. Ao invés de investir em sensores, nesse planejamento mais engessado, apostou no crowdsourcing usando GPS e base de dados dos usuários nos smartphones. Em poucos anos, o volume de dados do Waze já era 10x maior que o da Nokia. Hoje, a gente nem lembra o que era Nokia, mas as pessoas que ainda usam carro devem usar o Waze todo o dia. Fica até a provocação: me pergunto quanto de fato foi economizado por estados e municípios em alagamentos viários, viadutos, etc, nesses anos de Waze todos como consequência dessa autorregulação de trânsito baseado nos usuários e em colaboração.
Ana Clara: O que já podemos ver no dia a dia de smart cities no mercado?
Susanna: É exatamente no dia a dia que a smart city funciona: interligar residência e comércio, dar vida à cidade, pensar na mobilidade, espaços compartilhados. Eu posso morar em 50, 40, 30m² e usar uma cozinha compartilhada, um laboratório de costura, uma biblioteca, cinema. Um aplicativo da comunidade pode dar a possibilidade para os moradores de vender seus serviços, começar a criar um impacto econômico na vida de pessoas que geralmente não têm esse tipo de acesso. É sobre isso que eu sempre bato. Precisamos pensar nas cidades inteligentes, nesses projetos conceituais como algo topdown, mas o processo de desenvolvimento deve ser bottom up. Ou seja, no alcance de idosos, compartilhado com as pessoas. Se não tem impacto direto, no dia a dia, nas coisas simples, o conceito verdadeiro de smart cities se perde.
Lucas: No nosso conceito de cidades responsivas, não há uma transição preto para o branco. Acho que a gente já vive a realidade de cidades responsivas, cada vez mais e acho que um belo case é como as big techs de real estate, as proptechs estão conseguindo equalizar e arbitrar alguns mercados. Por exemplo, Airbnb e 5A, que no sistema deles de precificação, com algumas variáveis (algumas que ainda não estão bem equalizadas), conseguem automaticamente precificar aluguel.
Hoje, uma das grandes mazelas das grandes cidades é o déficit habitacional. E se, por outro lado, a gente olha para dados das grandes cidades, 20% dos imóveis residenciais estão em vacância. Claro, existem problemas jurídicos e outros problemas que impactam nessa vacância, mas boa parte desses imóveis estão desocupados pois têm uma certa dificuldade na precificação. Muitas vezes o proprietário acha que seu imóvel vale mais do que realmente vale, aquele imóvel acaba ficando muito tempo parado. Eu vejo que, em função dessa arbitragem no preço dos imóveis, dessa tabela de precificação baseada em big data, provavelmente nos próximos anos a gente vai acabar corrigindo esses valores. Temos imóveis disponíveis, temos déficit habitacional, o problema está no valor, no preço. Ajustando o preço baseado nesses valores hedônicos dessas plataformas, só com o que a gente tem hoje de imóveis disponíveis nos grandes centros urbanos já seria suficiente para corrigir boa parte do déficit habitacional. Esse é um belo exemplo. A gente já vive cidades responsivas, cidades baseadas em dados, muito baseada nessa lógica de empresas de tecnologia que atuam no setor. Acho que é questão de tempo para a gente começar a ver ajustes nesse mercado, inclusive com redução de lançamentos, visto que temos muitos imóveis desocupados.
Rodrigo Werneck: Eu queria trazer uma camada nessa discussão, pois eu vejo que o conceito de smart cities acaba muitas vezes passando à margem de discussões como plano diretor e zoneamento urbano. Então, queria trazer essa pergunta: essa leitura que eu faço, desse distanciamento entre empresas (e não me refiro aqui a incorporadores, que são muito ativos e próximos de governos), mas empresas de tecnologias: não estão muito distantes dos agentes públicos na hora de construir zoneamento urbano, novas diretrizes de ocupação das áreas urbanas?
Lucas: Como arquiteto, boa parte da minha formação é dedicada à arquitetura e começamos a empresa com foco em arquitetura, projetos, estudo, viabilidade de negócios e mercado imobiliário. E um dos maiores gargalos é mesmo o plano diretor, a interpretação, entender o que pode e o que não pode, padrões urbanísticos. Um dos nossos serviços no escritório, inclusive, é o PLACE, uma plataforma que usa ciência de dados para automatizar o que é viável em uma área, parametrizar planos diretores, cruzar informações e ter esse tipo de inteligência em real time. A partir disso, esperamos criar muitos dados, muita inteligência para encontrar, inclusive, incongruências no planejamento urbano. Quando começamos a botar todas as regras de um plano diretor no algoritmo, às vezes tem pontos da lei que são conflitantes. Quando o mercado trabalhar mais com dados na parte de desenvolvimento imobiliário baseado em plano diretor, vamos conseguir, a quatro mãos, traçar muitos pontos de melhoria com o poder público. Eu imagino que o Waze já possa prestar muita informação para o planejador municipal, departamentos de estrada, planejamento de mobilidade urbana. Nessa troca entre poder público e estado aberto, a melhoria constante baseada em dados, tem espaço para melhorar muita coisa.
Susanna: Concordo totalmente, você fala como arquiteto, eu falo como construtora e um dos problemas principais do dia a dia são os planos diretores. Eu li um mês atrás um dado muito interessante, que 3% dos dados que são coletados no mundo depois são realmente usados. Ou seja, quase nada. No dia a dia, isso complica. Você atende uma regra da prefeitura, do plano diretor, que não bate com a regra da Caixa Econômica, por exemplo. Mas a evolução é essa, usar os dados, compartilhar os dados. Acredito que quando chegarmos no verdadeiro compartilhamento de dados, a situação já será bem melhor.
Lucas: Mesmo em uma cidade relativamente rápida para aprovar projetos, ficamos de 6 meses a 1 ano com um projeto tramitando na prefeitura. E todas as informações que estão contidas num projeto deveriam ser de uma análise científica, um caminho simples e linear. Quando pensamos que todas essas informações, ainda mais usando modelos de tecnologia BIM para desenvolvimento de projetos, poderiam ser cruzados em um software público, uma parceria público-privada, ofereceria uma aprovação praticamente real time dos projetos, ao invés de rolar dentro de um envelope de mesa em mesa. Passando a aprovação de um projeto que leva em média um ano para em média, um dia, o ganho que teríamos em custo de oportunidade já seria grande.
Rodrigo: Sempre que vejo a discussão sobre smart cities, algo que me inquieta é a conectividade. Moro em Curitiba, que é uma cidade super desenvolvida, mas eu moro em uma região que a internet é muito precária. Essa disponibilidade de internet, eu entendo que seja uma das variáveis mais importantes para que essa discussão avance de forma mais estruturada, certo?
Susanna: 100% de acordo. E o período que a gente vive, da pandemia, prova isso. A conectividade é aquela que faz a diferença. O que era conectado, continuou fazendo parte da nossa rotina, do mundo do trabalho e, infelizmente, as faixas de renda menores são as que têm menos acesso à conectividade. O Brasil é um dos países do mundo mais avançados em alguns assuntos: redes sociais, são campeões, por exemplo, mas falta conectividade em muitos lugares. É preciso encontrar um acordo entre governo e prestadoras de internet, pois o benefício final é gigante. Precisa de investimento em conectividade.
Lucas: O acesso a dados, curadoria de conteúdo a partir do homeschooling certamente facilitaria muito o desenvolvimento, reduziria o custo de investimento em educação. Se a gente fosse zerar o pensamento, qual a primeira coisa que temos que ter para a educação de qualidade no Brasil? Oferecer internet de qualidade. A partir disso, o desenvolvimento de informação fica muito mais barato.
Ana: Além da questão da conectividade, questões de planejamento urbano também entram no conceito de smart cities e cidades responsivas como, por exemplo, o plano de transformar Paris em uma cidade de 15 minutos?
Susanna: Quando penso em smart cities, penso nas pessoas, na tecnologia, mas penso também no planejamento, meio ambiente. Limitar o conceito de smart cities não faz sentido. O urbanismo é uma parte fundamental da construção das smart cities. Quando eu penso nos 4 pilares de smart cities, seriam: planejamento urbano, meio ambiente, tecnologia e pessoas.
Lucas: Quando falamos de planejamento urbano, acho que temos dois caminhos. Um é quando vamos na linha do trabalho da Susanna, de criar uma cidade do 0 em que você tem liberdade para propor e criar dentro de um custo previsto. Quando falamos de uma cidade já consolidada, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, enfim, planejamento urbano no sentido mais intervencionista, como estes grandes planos de Paris, é impraticável nos dias de hoje. Essa intervenção urbana toma muito mais em contextos de acupuntura, como foi proposto em Nova York. Acredito muito que, com a conectividade, tudo fica mais perto, até a lógica do home office te permite estar em vários lugares ao mesmo tempo sem estar do lado do trabalho. Desde as cidades medievais, havia uma lógica do uso misto, que podíamos interagir e fazer tudo dentro de um pequeno círculo, depois veio o planejamento modernista, muito baseado no carro, que fez cidades muito problemáticas do ponto de vista urbanístico, como Brasília, pela qual boa parte de cidades americanas e brasileiras foram baseadas na setorização de uso, mas que já se perdeu e cada vez mais tem uma nova discussão de plano diretor. O uso misto não só está sendo permitido, como consolidado. Acredito que permitir o uso misto e a própria conectividade nos permite fazer quase tudo que precisamos sem sair de casa.
Rodrigo: Eu queria fazer uma pergunta para ti mesmo, Lucas, sobre desigualdade social. Eu ouço relatos assustadores, de certo modo, da crescente que podemos observar no nível de desigualdade social na pandemia, provocando grandes aglomerações de moradores sem teto: como pensar smart cities para essas pessoas?
Lucas: Eu acho que sim. Quando falamos em acesso a dados em smart cities, medidas muito simples como melhorar a internet, se fosse colocar em uma conta de Bolsa Família, é um dos principais insumos para termos desenvolvimento em vários níveis. Mas eu acho que tem, de novo, a própria livre iniciativa nesses modelos que são equilibrados. Todo o modelo recente tende ao equilíbrio por todos os lados. Coloco a desigualdade no sentido do déficit habitacional, precificado, tendo subsídio do estado ou não para ter uma linha de chegada mais equiparada. Nessa lógica, principalmente do QuintoAndar, de locação patamarizada, tu consegue ajustar preços à realidade do mercado e reduzir déficit habitacional. E, de outro lado, temos sempre a lógica do plano diretor. Uma das coisas que mais gera desigualdade dentro do ambiente urbano é o plano diretor elitizado. Em São Paulo, tem o exemplo do Jardins. Se a gente permitisse um pouco mais de densificação nos Jardins, teria, naturalmente, mais área para construir na cidade, uma queda nos preços, talvez não o suficiente para corrigir todo o déficit habitacional, mas seria mais uma medida. Então assim, conhecimento de densidade urbana por área, de malha urbana dentro de um planejamento de plano diretor é um dos principais instrumentos que o estado tem para diminuir essas desigualdades.
Susanna: A Planet trabalha principalmente habitações sociais. Por isso, percebo isso de perto a cada dia. Tem vezes que a gente encontra áreas onde o tamanho mínimo de um lote é 500m². Isso inviabiliza nosso negócio. E tem vezes que parece que a municipalidade não está ciente disso. Tem vezes que infelizmente alguns gestores parecem não querer aderir ao Minha Casa Minha Vida, que veem como algo negativo, que isso só dá problema para a Prefeitura. Aqui, volta a conversa do começo, não é simplesmente construir infraestrutura, é tecnologia, é impacto social alto. Trabalhar com o time a parte social dos projetos, com cursos gratuitos, biblioteca, cinema, tudo que oferecemos nos nossos projetos significa associar o conceito de MCMV ao bem estar das pessoas. O problema é quando os prefeitos têm uma visão negativa do adensamento e principalmente de um adensamento de faixas de renda mais baixas.
Ana: Lucas já citou home office, Rodrigo trouxe a questão da conectividade, então queria aproveitar para puxar o tema da pandemia. Vocês acham que a pandemia acelerou, de alguma forma, a demanda ou a discussão sobre o tema?
Lucas: Até vendo um pouco como nós nos posicionamos nesse contexto dentro da empresa, eu acho que sim. Quebramos fronteiras e paradigmas em relação ao digital. O próprio conceito de EAD passou muito tempo com um paradigma que era uma forma de pagar menos pela educação e hoje já vemos isso como sendo bem quisto pela facilidade, comodidade, simplificar processos. Por um lado, eu vejo que sim, mas não vejo uma ânsia ou busca por smart cities. A nossa tese é justamente que já vivemos e que a pandemia acelerou a responsividade das cidades e dos moradores. Até as pessoas são responsivas, se adaptam rápido, aderimos à tecnologia super rápido.
Susanna: Não basta as pessoas sentirem a necessidade de smart cities. Como eu falei no começo, se as pessoas não percebem um benefício direto, no dia a dia, não vai impactar as pessoas. E uma coisa que a pandemia reforçou foi a necessidade de coletividade. Quanto às cidades existentes, pensar em trabalhar os conceitos de smart cities significa melhorar as cidades, melhorar a conectividade e o social faz falta e são projetos que os governos precisam, na minha opinião, realmente fazer alguma coisa. Entrar em pautas como consumo energético, de água, impacto social. O privado, sozinho, não consegue fazer nada.
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