Crônicas

Bate sol na sua casa?

Onze horas da noite e você dá uma última olhada no celular antes de dormir, como se fosse algo seguro e/ou sensato a fazer e o sono não pudesse fugir pela fresta da janela. E já peço desculpas, porque o único alerta na tela do celular é meu: uma mensagem de voz por WhatsApp.

A mensagem tem cinco segundos e, por ser rápida, você dá play.

Os primeiros quatro segundos são de silêncio, nem um respirar ao menos, e você reflete se deu problema no meu celular ou no seu. No último segundo, contudo, minha voz surge apressada: bate sol na sua casa?

Com o foco na pergunta, você absorve apenas esse segundo de informação e descarta os quatro anteriores, 80% do tempo da mensagem. Responde também com um áudio e se deita para dormir, mas não consegue. Não consegue não pela presença do que estava na mensagem, mas pela ausência, e muitas vezes é o que falta que mais mexe com a gente.

Você não liga para o silêncio, e talvez tenha achado que foi displicência da minha parte, que eu caçava um assunto para perturbar sua paz e não achei nada melhor. Não foi isso. Esse silêncio foi o resultado do impulso, de não trabalhar a frase na cabeça antes de gravar a mensagem, fazendo com que cada segundo de silêncio da boca para fora fosse todo um debate da cabeça para dentro, uma desvantagem da conversa fiada de improviso.

Por isso, quero explicar o silêncio para você, segundo a segundo.

O primeiro segundo foi um monólogo interno em que eu e eu mesmo decidimos que já é fim de dia, e que não íamos começar um bate papo, indo direto ao que interessa. Assim, ficou de fora o Oi, tudo bem? Como tá por aí? Por aqui tá tudo meio esquisito, são mais de três meses de isolamento, sem ver gente, e nessa eu acabo conversando muito com quem gosto na minha própria cabeça, às vezes caminhando, até, trocando uma ideia nesse percurso sala, cozinha, corredor e quarto que faço todos os dias.

Já no segundo número dois, o segundo segundo, deixei de lado o contexto da própria conversa, sendo mais objetivo ainda. Por isso não falei sobre onde moro, no Edifício Tijucas, de frente para a XV, no coração afetivo de Curitiba, no 23º andar, já longe das pombas e perto dos urubus. Por isso mesmo, aliás, não entrei nesse assunto, porque eu perco o fio da narrativa fácil, você sabe, e começo a falar sobre tantas coisas que nem eram as coisas que a gente queria falar. Ou que eu queria falar, nesse caso.

No terceiro segundo, cancelei a apresentação do personagem do conflito: o sol. O sol que não gira em torno da terra, eu e você sabemos, mas que faz sim a pachorra de dar a volta por trás do meu apartamento no inverno, como quem atravessa a rua só para não cumprimentar um conhecido. Dou meu jeito, claro, e às vezes me debruço sobre o parapeito da sacada para poder vê-lo, esticando a cabeça sobre a Boca Maldita. Mas só é possível logo de manhã ou quase à noite, e no resto do dia fico eu, sua ausência e poucos reflexos nos prédios espelhados.

E se eu te poupei tanto de mim nesses três segundos, no quarto te poupei de você. Pois nesse percurso sala, cozinha, corredor e quarto que faço todos os dias, tenho falado com você em minha cabeça. E você me responde. Dá uma opinião, conta uma anedota, sem disfarçar a surpresa pela invocação de última hora. Depois que responde, cruza os braços e esfrega as mãos sobre os ombros, para cima e para baixo, olha em volta e me pergunta: não bate sol na sua casa?

Sempre a mesma pergunta, não importa quantas vezes eu te conjure, e me veio a preocupação: se o que falta por aqui também tem faltado por aí.