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Que o ano novo nos traga mais moradias

É da tradição brasileira a preocupação com a moradia. Essa é a mais pura verdade, que certamente se aplica a cada pessoa, à sociedade, ao Estado.

Simplesmente não se mostrou verídico no Brasil aquele discurso inflamado de Engels e às vezes repetido desde 1873, de que “Está claro como a luz do sol que o Estado atual não pode nem quer remediar o flagelo da falta de moradias”.

A prática brasileira mostrou o quão essas palavras eram inaplicáveis por aqui. Melhor que isso, apontou e seguiu com persistência um caminho frutuoso, conseguindo nortear as atividades imobiliárias com bom arcabouço legislativo.

O retrato disso está na Constituição Federal que prevê, dentre os direitos sociais, a moradia (art. 6º); que dispôs que promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23).

No século 20 tivemos, se pouco, a Lei 4.591/1964 (que dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias), incentivando e regulando novas edificações, e a Lei nº 8.245/1991 (que dispõe sobre as locações imobiliárias urbanas). 

Ambas as leis receberam atualizações, melhorando as respectivas abrangências e contemplando novas necessidades. E ambas foram essenciais para a disseminação de imóveis destinados à habitação, sejam a moradia do proprietário ou de inquilino.

“Moradia” não se confunde com “propriedade”, embora esta possa ser destinada àquela. Propriedade imobiliária, sem dúvida, compreende-se como “capital”. Essa é a lição de Thomas Piketty, em “O Capital no Século XXI”: “O capital é definido como o conjunto formado pelo capital imobiliário (imóveis, casas), utilizado para moradia, e pelo capital financeiro e profissional (edifícios e infraestrutura, equipamentos, máquinas, patentes etc.) usado pelas empresas e pela administração pública”.

Já “moradia” se compreende como “habitação”, o uso do imóvel para residência.

Pois bem. Existe o intento de construir habitações no país, é tema até constitucional; usar não é sinônimo de possuir. Indaga-se: deveríamos eliminar as locações residenciais?

A pergunta se baseia na proclamação, feita há século e meio, na Alemanha, por Arthur Mulberger e que ainda ecoa vez por outra: “Sendo assim, a abolição da moradia de aluguel é uma das aspirações mais fecundas e grandiosas que brota do seio da ideia revolucionária e deve se tornar uma exigência de primeira grandeza por parte da democracia social”.  Será?

Penso que não, e sei que ando em estrada com muita gente inteligente. E o digo porque a locação pode ser boa (e o é no Brasil) para os moradores, os locatários.

No que diz respeito às locações residenciais, e são elas que nos interessam agora, temos uma lei trintenária que, a par da sensibilidade dos legisladores e da colaboração de especializados operadores do mercado imobiliário, teve em sua elaboração, por exemplo, a valente Associação Permanente dos Inquilinos Intranquilos, presidida por Maria Elisa Barbosa Jardim; advogados do setor, como o carioca Geraldo Beire Simões e o paulista Alexandre Thiollier; magistrados, como Boris Kauffman (que presidiu o 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo); administradores de imóveis, como Hubert Gebara; a Federação Nacional dos Corretores de Imóveis, representada por Marcio Antonio Bueno (posteriormente Secretário da Justiça no Estado de São Paulo); dentre tantos outros, o que retrata a franca participação da sociedade na construção dessa lei. Essa conjunção deu certo.

Quais os segredos dessa lei tão eficaz? Eu diria que a receita está na simplicidade e facilidade de compreensão (como queria Napoleão Bonaparte que fossem todas as leis…); na operacionalidade de seus dispositivos (celebrar o contrato é fácil; acionar diante do descumprimento por um ou outro contratante é simples); no acolhimento de diversas situações que podem ser estatisticamente de baixa ocorrência, mas que são doídas quando acontecem e exigiam suporte legal (como, por exemplo, a extinção do contrato de trabalho com o locatário e a desocupação consequente; a necessidade de retomar o imóvel para uso próprio; a suspensão do despejo após o falecimento do cônjuge, do ascendente, do descendente ou do irmão de qualquer das pessoas que habitem o imóvel, que não haveriam de sofrer, em acréscimo, com o desalijo).

Em suma, a lei equilibrou bem as posições, permitindo a tranquilidade de morar a um, a segurança de receber o aluguel a outro, a ponto de serem poucas as ações judiciais locatícias, quando comparada a quantidade ao volume de imóveis locados: basicamente, são ações decorrentes de não pagamento do aluguel.

Óbvio, essa segurança legal permitiu o incremento das construções para locação residencial. O equilíbrio entre os contratantes é inegavelmente salutar.

O que nos conduz aos planos governamentais de construção de imóveis destinados à locação a pessoas com baixa renda, projeto que ao distinguir “propriedade” de “habitação”, estimula tanto uma quanto outra.

Esse plano grandioso e que merece elogios vem na esteira de outras ideias excelentes que estimulam a construção de habitações através de estímulos fiscais e que asseguram o cumprimento dos contratos garantindo previsibilidade e estabilidade. Basicamente: que resolvem a questão habitacional através da união de Estado e Sociedade, sem nebulosidades ideológicas, em benefício de todos.

A iniciativa privada deverá ser convocada e quiçá leve planos já bem estudados, que conjuguem a inversão de capitais, a participação ou o incentivo do Estado, a melhor gestão das locações. E o empenho privado, aliado à boa política e à segurança jurídica, só podem dar certo.

Sem sombra de dúvida não existe mais essa “exigência de primeira grandeza” de se abolir as locações, como se proclamou veementemente (e erradamente) no passado. Vimos que isso não deu certo em lugar algum e temos, nós, o privilégio de sermos mais sábios, após tanta história: “É privilégio dos historiadores serem sábios depois dos acontecimentos” (Cyril Lionel Robert James – 1901/1989).

Por isso, trilhando exatamente a linha traçada pela Constituição de 1988, é que podemos acreditar que o futuro nos trará mais e melhores moradias, exercendo a Economia seu fundamental papel em perfeita consonância com o programa presente na Constituição brasileira.

Neste início de ano novo, esses são bons votos. E no mais, possamos ter felicidade e saúde pra dar e vender

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Jaques Bushatsky

Jaques Bushatsky é advogado, foi Procurador do Estado de São Paulo e Juiz do TIT/SP por dois mandatos e chefiou a Procuradoria da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Presidente da Comissão de Locação e Compartilhamento de Espaços do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, fundador e diretor da MDDI – Mesa de Debates de Direito Imobiliário. Autor da obra “Aspectos Principais do Aluguel Comercial” e coautor da obra “Locação Ponto a Ponto” publicada pelo IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.

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