O tema 1127 do STF e a penhora do bem único do fiador na relação locatícia
Resumo
Depois de uma longa discussão, nesta semana, o STF autorizou a penhora do bem de família como garantia na locação de imóveis comerciais.
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1. Da Lei do Inquilinato
O legislador inquilinário foi sábio ao acrescentar o inciso VII junto ao art. 3º da Lei 8.009/90, que já contemplava outras regras excepcionais de permissibilidade de penhora do bem único do devedor.
A exemplo dos demais incisos extravagantes, a sua inserção se impunha por justificada razão e, neste caso, no interesse do mercado de locações.
Não se trata de regra que visa prestigiar a recuperação de crédito em favor do locador, mas, para assegurar acesso à moradia e à prática comercial em favor do locatário, visto que, a impossibilidade de constrição do bem único do fiador, tornaria quase impossível ao candidato a locação conseguir um garantidor que tivesse em seu patrimônio, mais de um imóvel.
O instituto da garantia, no caso fidejussória, é de nascimento bíblico, constituindo-se no principal alicerce facilitador da consecução de diversos negócios jurídicos, in casu, locatícios. As pesquisas indicam que a fiança é o principal modal utilizado no mercado de aluguéis no Brasil.
Parte expressiva desta razão advém da circunstância de ser, a fiança, a única modalidade de garantia gratuita, visto que as demais modalidades, caução, seguro fiança, cessão fiduciária, hipoteca ou penhor, todas constituem operações onerosas ao locatário.
2. Do julgamento do pleno do STF no Recurso Extraordinário 407.688/SP em 2006.
A primeira vez que o plenário do STF se debruçou sobre a constitucionalidade do dispositivo inquilinário ocorreu ao apreciar o Recurso Extraordinário 407.688/SP em 08.02.2006, que restou assim ementado:
FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º. Constitucionalidade do art.3º., inc. VII, da Lei 8.009/90, com redação da Lei 8.245/91. Recurso Extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º. Inc. VII, da Lei no. 8.009, de 23 de março de 1.990, com a redação da Lei no. 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º. da Constituição da República.
O Eminente relator Ministro Cezar Peluso, com propriedade asseverou: “ castrar essa técnica legislativa, que não pré-exclui ações estatais concorrentes doutra ordem, romperia o equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantias mais custosas para as locações residenciais, com conseqüente desfalque do campo e abrangência do próprio direito constitucional à garantia . ”
Em outras palavras, afastando-se a constitucionalidade da penhora do bem único do fiador, estar-se-ia afastando o acesso à moradia digna, que é a própria razão do direito de moradia consolidado na Carta Magna, pois, o mercado necessita que se fortaleçam os instrumentos de garantia para que se incremente a oferta de imóveis para fins de locação.
Na esteira deste julgamento pacificador operou-se sob a relatoria da Eminente Min. Ellen Gracie, a análise do RE 612.360, já submetido à sistemática da Repercussão Geral (Tema 295), em 03 de setembro de 2010. Versava este sobre contrato de locação comercial, basta uma simples visita aos autos.
Nesta oportunidade o TRIBUNAL PLENO reafirmou a remansosa jurisprudência e fixou tese no seguinte sentido:
“ É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da execução prevista no art. 3, VII, da Lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6º. Da Constituição Federal., com redação da EC 26/2000.”
Na esteira destes entendimentos o STJ, em 2014, também assentou o tema 708, declarando que é “É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da lei 8.009/90″.
A sequência de julgados repetitivos culminou na pacificação do tema com a edição da Súmula 549 do STJ, que assentou: “É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”.
Imperioso destacar que, a exemplo do paradigma do STF na geração do Tema 295, no STJ o RESP 1.363.368/MS que foi o precursor da tese, novamente deu-se em locação comercial.
De sorte que podemos asseverar que o Código Civil, a Lei do Inquilinato e os inúmeros julgados das Cortes Superiores nunca distinguiram a penhorabilidade diante da qualidade da locação em caráter residencial ou comercial.
3. O ponto inicial da controvérsia
Em que pese todo o alicerce legal, doutrinário e jurisprudencial, a 1ª Turma do STF inovou. Ao apreciar o RE 605.709/SP em 12/06/2018, DJe 18/02/2019 (em acórdão que não transitou em julgado), por diminuta maioria, providenciou entendimento diverso a ponto de gerar perigoso precedente ao mercado de locações de imóveis desta espécie no Brasil.
Da análise do referido acórdão e das notas taquigráficas que o elucidam, percebe-se com clarividência que a decisão se lastreou em impingir ao tema 295 do STF e seus paradigmas, a condição de origem em locação residencial.
Eis a pedra fundamental do precioso equívoco. Já demonstramos acima que o “Leading Case” da repercussão geral do STF (Tema 295) operou-se concretamente em relação locatícia comercial.
Nesta fenda o julgamento estava a inovar em tese pacificada na Suprema Corte, criando uma danosa distinção, ao defender que o bem de família do fiador em contrato de locação não residencial seria impenhorável.
A 1ª. Turma na sequência até restabeleceu o entendimento primitivo e passou a afirmar que o acórdão paradigma do RE 605.709 não teria o condão de revisitar o Tema 295 e de criar distinção de tratamento diante da atividade locatícia.
Urge trazer à colação o RE 1.223.843 ED, onde enfrentando diretamente o acórdão excepcional, o Eminente Min. Alexandre de Moraes, assevera:
“Quanto ao recente julgado proferido pela Primeira Turma do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no RE 605.709, em que foi afastada a penhorabilidade do bem único do fiador em contrato de locação comercial, tratando-se de posição isolada desta Corte, não se sobrepõe ao precedente formado pelo Tribunal Pleno sob a sistemática da repercussão geral.” (DJe 04.12.2019) (grifo nosso)
No mesmo viés colhe-se do RE 1.240.968 de 06/04/2020 sob a lavra do Eminente Ministro Roberto Barroso, outra decisão colegiada cuja ementa resumida contempla:
“ O Supremo Tribunal Federal entende que o art. 3º, VII, da Lei no. 8.009/1990, ao tratar da garantia qualificada, não fez qualquer diferenciação quanto à natureza do contrato de locação, dessa forma independe se a garantia é residencial ou comercial (RE612.360-RG, Rel. Min. Ellen Gracie”. (DJe 06.04.2020)
Inobstante, em que pese o movimento da 1ª Turma e os sucessivos julgados de retratação, a novel tese foi amplamente acolhida pelos ínclitos Ministros da 2ª Turma que passaram a adotar a novidade num flagrante caso de distinguishing.
Forte neste mister os seguintes julgados: RE 1.242.616, RE 1.228.652, RE 1.287.488, RE 1.277.481, entre outros.
Assim, se é certo que o direito não deve conviver com surpresas, perceptível estava que a desarmonia reinava na mais alta Corte do País, justamente aquela que tem como missão final a pacificação e uniformização das decisões, com o tão almejado patrocínio da segurança jurídica.
Os credores mantinham a penhora do bem único do fiador em locação comercial nos julgamentos firmados pela 1ª Turma, mas, na 2ª Turma o resultado produzido caminhava em traçado diametralmente oposto, com o afastamento da constrição.
4. Do Leading Case no RE 1.307.334
Ao ascender à Suprema Corte o RE 1.307.334/SP, cujo acórdão engajou a aplicabilidade do Tema 295, sem distinção da espécie locatícia, percebeu de maneira acertada o núcleo de Repercussão Geral do STF em dar cifras definitivas à discórdia entre as suas Turmas.
Colhe-se da decisão acolhedora sob a relatoria do Eminente Ministro Presidente a configuração dos pressupostos necessários à rasa intervenção:
“ Nada obstante, revela notar que as Turmas desta Corte, têm divergido na solução da controvérsia constitucional, ora considerando impenhorável o bem de família do fiador em contrato de locação comercial, ora assentando sua penhorabilidade.” (RE 1.307.334).
Ao feito foram admitidas importantes entidades do mercado como amici curiae, CNC – Confederação Nacional do Comércio; CNDL – Confederação Nacional de Dirigentes; e do segmento imobiliário, ABADI – Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis; ABMI – Associação Brasileira de Empresas do Mercado Imobiliário além da ABRASCE – Associação Brasileira de Shopping Centers.
É importante separar as entidades. As primeiras nortearam suas apreensões em face dos locatários e a sua eventual incapacidade de oferta de garantia no modal usual, onde os próprios sócios figuram como garantidores da relação locatícia.
Já as entidades do mercado imobiliário, além da questão de mérito, trouxeram importantes dados e estatísticas do setor, demonstrando que uma mudança de interpretação fragilizaria enormemente o desenvolvimento das atividades comerciais e de serviços no Brasil, principalmente junto às micros, pequenas e médias empresas.
A análise de mérito teve início na Sessão Plenária do dia 12 de agosto de 2.021 e seu término no dia 08 de março de 2.022.
Por maioria, foi vencedora a tese do ilustre relator Ministro Alexandre de Morais, em seu extenso e judicioso voto que ao cabo construiu a seguinte tese ao Tema 1127:
“ É constitucional a penhora do bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial”.
Com o nobre relator os votos dos Ministros Roberto Barroso, Nunes Marques, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, André Mendonça e Luiz Fux.
Venceu a corrente que não minimiza a moradia como direito fundamental, mas, ao contrário que a potencializa no mais elevado nível porque credencia em paralelo o direito de propriedade, da autonomia da vontade e da livre capacidade de empreender, características fundamentais do Estado democrático.
Percebe-se que a fiança é operada por livre e espontânea vontade, mas, para que seja eficaz deve trazer consigo a responsabilidade do ato firmado. Ser fiador não é ser testemunha de um vínculo, mas, ser na essência responsável pelo cumprimento de todas as obrigações convencionadas.
Neste marco já vinha destacando em seus votos o Eminente Min. Nunes Marques com extremo pragmatismo:
“ A circunstância de o fiador haver oferecido voluntariamente a garantia em contrato de locação, mesmo que de imóvel comercial, desautoriza a invocação do postulado da impenhorabilidade da propriedade em análise. Admitir o contrário se constituiria, a um só tempo, clara violação do princípio da boa-fé objetiva” (RE 1.303.711)
No mesmo sentido a proveitosa aula do Min. Roberto Barroso ao asseverar:
“ 18. Numa economia de mercado, como a instituída em nossa Constituição, a livre iniciativa é aspecto inerente à liberdade individual.
Cabe a cada cidadão decidir onde e de que forma aplicará seus rendimentos e seus bens, podendo empregá-los para o exercício da atividade econômica que mais lhe aprouver.
19. No caso examinado nestes autos, os recorrentes prestaram fiança em contrato de locação comercial. Evidentemente, a fiança prestada – inclusive com possibilidade de penhora do bem de família, nos termos do art. 3º. VII da Lei no. 8009/90 – foi fator determinante para a própria celebração do contrato de locação, possibilitando o exercício da atividade econômica pela sociedade. Sem a prestação da fiança, possivelmente o contrato não teria sido assinado pelo proprietário do imóvel”. (RE 605.709).
E tudo se encaixa na visão lá atrás estampada na análise do RE 407.688. Na esteira da discussão em Plenário, os Min. Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes destacaram ainda os princípios da autonomia e da autodeterminação das pessoas, como princípios tão elementares que sequer aparecem no texto constitucional, mas que integram o direito de personalidade e de liberdade de contratar. Quem fia sabe de antemão os riscos que enfrentará em sua jornada.
O Eminente Ministro Relator Alexandre de Moraes, também trafegou neste sentido no seu voto vencedor que com maestria considerou:
“Assim, a livre iniciativa não deve encontrar limite no direito à moradia (art. 6º. Da CF/1988) quando o próprio detentor deste direito, por sua própria vontade, assume obrigação capaz de limitar seu direito à moradia”. (RE 1.334.307)
5. Da conclusão
Por mais que fosse sedutora a tese vencida, da livre iniciativa versus o direito à moradia (com o prestígio desta última), a sua vitória representaria um enfraquecimento da garantia nas locações comerciais e um enorme custo ao pretendente à locação no Brasil.
Fosse outro o entendimento da nossa maior Corte, o mercado passaria a partir de hoje a exigir fiadores com diversos bens ou mais facilmente, carregaria seus negócios para as garantias onerosas, criando uma enorme dificuldade financeira justamente às empresas de menor porte, ou mesmo fomentaria a impossibilidade da locação.
A regra geraria um enorme desestímulo a criação de novas empresas e negócios tão indispensáveis ao desenvolvimento de uma Nação, cujos efeitos seriam muito mais nefastos que a constrição do bem único de fiador em sede de locação comercial.
Já tivemos oportunidade de asseverar, baseado em pesquisas realizadas junto à RAL – Rede Avançada de Locações, “que a perda da propriedade dos fiadores em hasta pública não atinge 0,2% de todas as execuções neste mercado.”
O Supremo Tribunal Federal com a decisão em apreço, prestigiou todos os estudos que culminaram na edição da Lei 8.245/91, que revolucionou o mercado de locação de imóveis no Brasil e de maneira especial o seu art. 82.
A diretriz valoriza o mundo real (realidade circundante), aquela que aproxima pessoas e negócios com regras transparentes, proporcionais, razoáveis e coerentes.
A decisão concilia com enorme felicidade diversos direitos fundamentais da nossa Carta Magna. Além dos já destacados (direito de propriedade, da autonomia da vontade e da livre capacidade de empreender), também o direito à proteção do direito social ao trabalho e o direito à proteção e defesa do consumidor.
O julgado por fim, pacifica o setor, mantém os vínculos existentes, amplia a capacidade de geração de novos negócios e traz consigo um enorme bem incorpóreo: a segurança jurídica que todos precisamos para nos desenvolvermos enquanto pessoas e sociedade.
Leandro Ibagy é empresário e advogado formado em 1988 na UFSC – especializado no Direito Imobiliário, diretor jurídico da Ibagy Imóveis Ltda., ex-professor da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor permanente da ESA – Escola Superior da Advocacia de Santa Catarina, presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SC e coordenador de Locação da CBCSI/CNC, Câmara Brasileira de Comércio e Serviços Imobiliários da Confederação Nacional de Comércio.
Tudo certo! Continue acompanhando os nossos conteúdos.
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