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Inovação

Leão Serva: “A posse do imóvel não é mais um desejo para os brasileiros”

Em entrevista ao Imobi Report, jornalista Leão Serva diz que a pandemia acentuou tendências em direção à moradia flexível; tema foi abordado em livro lançado em dezembro em parceria com o CEO da Vitacon, Alexandre Frankel

Os impactos que a pandemia do novo coronavírus trouxe sobre a relação das pessoas com a moradia foram o debate do ano em 2020 no mercado imobiliário, e um estudo divulgado em dezembro demonstra em números como a Covid-19 intensificou algumas tendências. A pesquisa, realizada pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) especialmente para o livro “Como Viver em um Mundo Sem Casa”, assinado por Alexandre Frankel, presidente do conselho da Vitacon e CEO da Housi, e pelo jornalista e escritor Leão Serva, mostrou por exemplo que 40% dos entrevistados trabalhavam em home office no mês de agosto – e que 74% destes achavam prazeroso exercer seu ofício dentro de casa.

Outros dados do estudo, coordenado pelo sociólogo Antonio Lavareda, indicam também uma relação menos obsessiva das pessoas com a casa própria (70% não têm apego a um lugar fixo), a consolidação da moradia flexível entre os mais jovens (76% dos entrevistados entre 18 e 24 anos preferem morar em um lugar adequado à fase de vida) e a rejeição a formas habituais de financiamento imobiliário (apenas 26% são favoráveis ao financiamento da casa própria ao longo de 30 anos com um banco).

O livro “Como Viver Em Um Mundo Sem Casa”

Além das análises da pesquisa do Ipespe, o livro, lançado em dezembro, traz artigos de especialistas como a socióloga Célia Belém, o economista Gesner de Oliveira (FGV), os professores da Universidade de Columbia (EUA) Shawn Amsler e Pedro Rivera e o professor e cientista político Ben Ross Schneider, do MIT (EUA), sobre as tendências de moradia para os próximos anos, além de depoimentos de adeptos do trabalho remoto que optaram por encarar a moradia como um serviço contratado.

Colunista da Folha de S.Paulo e diretor de jornalismo da TV Cultura (SP), Leão Serva, estudioso sobre mobilidade e urbanismo, já havia atuado em dupla com Frankel na obra “Como Viver em São Paulo sem Carro”, lançada em 2012, que antecipou tendências sobre mobilidade, como o compartilhamento de transporte e o uso de bicicletas. Em entrevista ao Imobi Report, Serva afirma que a pandemia evidenciou que a fixação das pessoas em viver num mesmo imóvel está sendo questionada por todas as faixas etárias, especialmente entre os mais novos, e que a tendência a médio prazo é a posse do imóvel ser vista mais como um investimento que como moradia. “O imóvel não é mais aquele lugar em que a gente nasce, cresce, vive e morre, como acontecia no passado”, aponta.

Alexandre Frankel, presidente do conselho da Vitacon e CEO da Housi, e o jornalista e escritor Leão Serva
O jornalista e escritor Leão Serva e Alexandre Frankel, presidente do conselho da Vitacon e CEO da Housi

Imobi Report: De todos os dados e conclusões da pesquisa do Ipespe sobre as mudanças na relação das pessoas com a moradia, abordadas no livro Como Viver em um Mundo Sem Casa, qual delas é a mais significativa, a que ficará como legado no pós-pandemia?

Leão Serva: O dado mais surpreendente é que a posse do imóvel não é mais um desejo para a maioria dos brasileiros de todas as idades. E entre os jovens, repete-se o fenômeno que a gente constatou no primeiro “Como Viver em São Paulo Sem Carro”, em 2012, que apontava questionamentos sobre a posse do automóvel, depois de um século de existência dessa indústria. A propriedade ou a fixação no imóvel começa a ser questionada por todas as partes sociais, mas entre os jovens isso é muito forte. O jovem evita a ideia de um compromisso de 30 anos para comprar um imóvel. Ele prefere a mobilidade e a liberdade de não estar preso ao mesmo lugar.

“As pessoas têm agora uma relação de liberdade com a propriedade, o que te coloca mais próximo da ideia de um investidor do que de um morador de imóvel”.

Imobi Report: No livro, você comenta que um dos motivos que afastam o brasileiro da casa própria e o aproximam do aluguel são os financiamentos de imóveis historicamente muito longos e inflexíveis. Porém, hoje os juros do financiamento estão muito mais baixos, com prazos menores e maior competição entre bancos por esse mercado. Essa nova dinâmica não favorece, por outro lado, a compra da casa própria em detrimento dessas novas modalidades de moradia flexível?

Leão Serva: A rigor, você sempre vai ter todas as coisas. Nesse mundo em que o carro está sendo questionado, a indústria automobilística ao mesmo tempo bate há alguns anos recordes de venda. A sociedade é plural e ela comporta diversos comportamentos. Mas o interessante a se ressaltar é o aspecto do desapego, e isso não quer dizer que a pessoa não terá a propriedade de uma casa, mas que ela deixará de ter uma relação, digamos, biunívoca [com uma única finalidade] com a sua moradia. As pessoas têm agora uma relação de liberdade com a propriedade, o que te coloca mais próximo da ideia de um investidor do que de um morador de imóvel. Se você tem um dinheiro, pode investir em um imóvel tendo em vista que hoje você vai morar nele, amanhã pode colocá-lo para alugar e no outro dia você vai vendê-lo. O imóvel não é mais, necessariamente, a moradia na qual a gente nasce, cresce, vive e morre, como acontecia no passado.

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“A pandemia acentuou certos comportamentos associados a curvas de longo prazo, como o home office e as condições mais organizadas no mercado imobiliário”

Imobi Report: A pesquisa do Ipespe apontou algumas influências da pandemia sobre a relação das pessoas com a moradia, mas ao mesmo tempo alguns estudiosos questionam os efeitos da crise sanitária a longo prazo, evocando que, após as reações imediatas a grandes impactos, a tendência humana é de uma retomada lenta e gradual à normalidade. A pandemia é um marco que dividirá nossas formas de morar em “antes ou depois”, um será somente uma catalisadora de mudanças que já vinham ocorrendo?

Leão Serva: O nosso livro ecoa muito os fatos relacionados à pandemia por uma razão um pouco do acaso, de estar ali na hora certa. Nós fizemos uma pesquisa com o Ipespe no começo do ano, quando não se falava de pandemia, e então tivemos a oportunidade de fazer outra em agosto, quando a pandemia estava no seu auge, talvez começando a dar os primeiros sinais de estabilização. Um aspecto muito importante é que a pandemia acentuou certos comportamentos associados a curvas de longo prazo. Várias dessas tendências, por exemplo, a de que inúmeras atividades profissionais pudessem vir a ser exercidas em home office, vêm de muitos anos. Então, naquelas atividades profissionais que são perfeitamente exercidas em home office, essa curva se acentuou com a pandemia e não vai voltar. Outra mudança em longo prazo é que o financiamento imobiliário que temos no Brasil de uns oito anos para cá, mesmo com pequenos solavancos, tende a se consolidar, porque isso é um bom negócio para os bancos e para o mercado imobiliário. Ele sairá da mão do Estado, que financiou o imóvel dos meus pais lá atrás, e vai para a mão do mercado, que faz solavancos mas respeita mais os longos percursos. Então as condições do mercado imobiliário mais organizadas são outra tendência que está aí para ficar, assim como o home office.

Imobi Report: – Hoje, em países ricos da Europa Ocidental, como Alemanha e Suíça, cerca de 50% das pessoas moram em imóveis alugados. No Brasil, são apenas 18%. Você vê possibilidade de o mercado brasileiro de residências alugadas crescer a ponto de se aproximar desses índices?

Leão Serva: Não tenho dúvida de que a gente acompanha essas tendências de longo prazo. No começo deste século eu trabalhava com uma empresa de jornalismo digital e todos os dados em geral mostravam um atraso de 10 anos entre fatos geradores nos Estados Unidos e no Brasil. E ao longo do século 21 esse delay diminuiu muito. Eu acho que sim, e lhe digo que o problema do aluguel no Brasil em grande medida se deveu à inflação, que foi um elemento estrutural da economia brasileira e causou um desarranjo completo das relações entre inquilino e proprietário. Depois da década perdida dos anos 80 e metade dos anos 90, com inflação muito alta, houve uma reação governamental demagógica sobre o aluguel: no curto prazo ela aparentemente protegia os inquilinos, mas no longo prazo criou um caos no mercado. Ou seja, desde os anos 80 as leis brasileiras fizeram com que os proprietários não topassem essa relação com os inquilinos, o que explica a existência de tantos imóveis vazios nas cidades. Mas, agora, há muitas razões para crer que isso vai acabar. Em primeiro lugar, a visão do imóvel como investimento é fundamental para relações de aluguel, clássicos ou novos, no estilo Airbnb. E isso aumenta a oferta, evitando que os proprietários se sentem em cima do imóvel, o que foi uma forma defensiva nas décadas anteriores. Nossa curva de longo prazo é nesse sentido, como expõem os estudos que a gente publica no livro, tanto do Gesner Oliveira, mostrando a economia brasileira, como os dos professores Ben Schneider, Shawn Amsler e mesmo Pedro Rivera, que mostram as tendências nos Estados Unidos dessas novas formas de relação de aluguel, que devem ser replicadas no Brasil.

Imobi Report: – Uma pesquisa da Apartment List produzida no final de 2019 aponta que millennials americanos continuarão morando de aluguel não pelo estilo de vida, mas pela falta de acesso financeiro à compra do imóvel. Já a Century21, de Portugal, mostrou num estudo recente que oito em cada dez jovens lusitanos entre 18 e 34 anos gostaria de ser proprietário de um imóvel. Para você, a maior parte dessas novas gerações busca outras alternativas de moradia porque querem ou porque não podem?

“Há uma tendência nos próximos anos de uma grande produção de imóveis para investimento” 

Leão Serva: Os textos dos professores Ben Schneider e Shawn Amsler mostram que nas grandes cidades americanas aumentou muito o preço do metro quadrado para compra e, portanto, para aluguel. Então a tendência do coliving, da moradia compartilhada, em grande medida é uma resposta a isso. Porque quando você compartilha partes importantes daqueles metros quadrados, de alguma forma divide uma parte dele em várias pessoas, é como se houvesse uma vaquinha para a cozinha, para o jardim e para todas as áreas que você topa compartilhar. E é algo que depende muitas vezes da cultura. Por exemplo, nosso estudo do Ipespe mostra que o brasileiro não gosta de compartilhar o banheiro da casa, algo que os europeus não se incomodam. Esse fenômeno mostra uma tendência ao aumento do preço dos imóveis nas grandes cidades do mundo, o que já está se replicando no Brasil. Ora, quando você tem um preço muito alto, quando você tem uma vantagem para o vendedor, você produz. Então há uma tendência nos próximos anos de uma grande produção de imóveis para responder a isso. Vejo aí uma tendência de que os grandes investidores invistam para alugarem a um preço alto. E de um investimento à moda americana, em que um edifício inteiro, de propriedade de um fundo ou de uma empresa, é todo ele alugado, mas com uma oferta grande que pressiona para baixo o preço do aluguel e ao mesmo tempo garante uma rentabilidade de longo prazo.

Imobi: Você também escreveu três edições da obra “Como Viver em São Paulo sem Carro”, em 2012, 13 e 14, antes ainda da massificação dos aplicativos de transporte, que apontaram uma tendência de menosprezo gradual do carro por parte das novas gerações. Como você associa a posse do automóvel e as mudanças nos hábitos de locomoção carro com as novas relações com a moradia? Estamos caminhando para valorizar prédios com menos vagas na garagem ou cada vez mais próximos do local de trabalho, por exemplo?

Leão Serva: Eu e o Alexandre [Frankel] ficamos muito felizes porque aqueles três livros, de alguma forma, jornalisticamente eram um furo, pois eles captaram a angústia dos jovens e da sociedade com o automóvel, principalmente com congestionamentos. Nós fizemos o primeiro livro impactados por um grande congestionamento que aconteceu em São Paulo no final de 2011, causado por uma sucessão de fatos, mas principalmente porque o governo estava financiando a compra de automóveis e subsidiando o preço da gasolina desde o começo dos anos 2000. Então ficou muito fácil andar de carro, e houve um feriado no verão em que São Paulo simplesmente parou. Alguém que saiu da capital para ir para o Litoral norte do Estado passou o final de semana na estrada. Então, em 2012 nós fizemos o livro Como Viver em São Paulo Sem Carro, que era, fundamentalmente, sobre o escape do congestionamento. Eu e o Alexandre brincamos que esse é o quarto livro em que tratamos do mesmo assunto, que é mobilidade, porque ao fundo a ideia sempre é como administrar melhor a sua relação com a cidade. Portanto o uso do imóvel alugado ou mesmo compartilhado, o coliving, é algo que está o tempo todo sendo discutido no livro, em grande medida, como forma de morar perto do trabalho. Essa é a essência que costura todos os quatro volumes.