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Racismo estrutural na arquitetura: das cidades ao quartinho da empregada

Segundo o Instituto Aspen, racismo estrutural consiste em um sistema no qual normas, práticas, políticas e representações reforçam e perpetuam a desigualdade de grupos raciais. Não é algo que as pessoas ou instituições, necessariamente, optam por praticar, mas uma característica da organização social que estamos. Levando em consideração este conceito, uma cidade poderia ser racista? A resposta é sim. 

A cidade como parte da sociedade e sua organização, tendo em vista aspectos econômicos e estruturais, está relacionada às relações entre classes sociais. Em um país de histórico escravocrata, como é o caso do Brasil, passa também pela questão de raça. “Ainda hoje, qualidade de vida é relacionada a uma distinção de classe, de acessos e origens. Há uma discussão gigantesca relacionada a como pensar cidades que não sejam racistas e, também, como o racismo impacta as cidades. Muitas pessoas acham que não impacta, mas claro que impacta quando você tem espaços que são frequentadas por pessoas negras e espaços que não são frequentados por pessoas negras. Quando pensamos na organização de uma cidade, temos que pensar em quem ocupa esse poder. A cidade reflete, muitas vezes, um pensamento único de vivência e de realidade, e também de ausência da discussão coletiva”, explica Stephanie Ribeiro, arquiteta e colunista na revista Marie Claire.

Anna Lyvia Roberto Custódio Ribeiro, pesquisadora, advogada e vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados em São Paulo

A pesquisadora e advogada Anna Lyvia Roberto Custódio Ribeiro, vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados em São Paulo concorda e explica que a organização da cidade impacta várias oportunidades que uma pessoa vai ter ao longo da sua vida. “A ocupação do território determina algumas premissas, como acesso a equipamentos públicos de qualidade (boas escolas, postos de saúde, oportunidades de trabalho) e estar submetido a situações de violência. No Brasil, a população negra está relacionada com uma pior condição socioeconômica e sua ocupação da cidade reflete isso. É uma população que está majoritariamente nas periferias”, explica Anna.

A origem escravocrata

Para explicar mais sobre a origem da organização social segregada nas cidades brasileiras é preciso voltar atrás e encarar nosso histórico como país escravagista. “Foi em 1850 que a Lei das Terras passou a atribuir valor às terras brasileiras. Até então, estes espaços eram doados, concedidos pelo governo de Portugal ou simplesmente ocupados. A relação deste acontecimento relaciona-se com a escravidão pois, paralelamente, o Brasil cedeu a pressões estrangeiras e interrompeu o tráfico de escravos. Toda a renda que provinha do tráfico começa a ser substituída pela venda de terras. Aí, começamos a ver o acúmulo de propriedade por determinados grupos sociais”, explica a advogada.

Assim, apesar do tráfico ser proibido, a mão de obra de pessoas escravas não era. A Lei Áurea só foi assinada em 1888 e, quando foi, não foi acompanhada de medidas complementares de integração das pessoas negras à sociedade. “Com a abolição, há a liberdade formal, mas não são levadas em considerações medidas de inserção socioeconômica e nem de acesso à propriedade. Essas estruturas latifundiárias, questões mal resolvidas do Século XIX, estão presentes hoje”, aponta Anna.

O quartinho de empregada

Karoline Maia, cineasta e roteirista do documentário longa metragem “Aqui não entra luz”

Com falta de acesso à moradia, as pessoas negras e seus espaços foram, aos poucos, apagados da história e renegados para um lugar de margem. Margem da sociedade e margem dos rios. “A população negra costumava ocupar lugares centrais no funcionamento de uma cidade, mas com o enriquecimento dos demais imigrantes e expansão da cidade, tiveram que migrar para localidades desocupadas e acessíveis. Em São Paulo, por exemplo, durante o Século XX, você pode observar a alteração dos bairros e a ocupação das margens dos Rios Pinheiros e Tietê, assim como o surgimento das favelas”, afirma Anna.

Outra característica notória da arquitetura brasileira é o quartinho da empregada. Karoline Maia, cineasta negra, se propôs a pesquisar a relação entre o cômodo e a senzala. A pesquisa rendeu o documentário longa metragem “Aqui não entra luz”, que deve ser lançado em 2021. Neste, a equipe entrevistou trabalhadoras domésticas em cinco estados: São Paulo, Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Estes foram alguns dos estados brasileiros que mais receberam africanos escravizados. “No documentário, nos propusemos a investigar as relações de trabalho construídas no ambiente doméstico desde o Brasil Colônia até atualmente. Na nossa pesquisa encontramos relações arquitetônicas bastante claras entre a senzala e o quarto de empregada”, conta Karoline. “Há um esforço arquitetônico de demonstrar que o quartinho da empregada não faz parte da casa. Seja em casas ou apartamentos, esse cômodo é sempre no fundo, perto da cozinha e da lavanderia, e longe dos quartos da família. A estrutura física também é problemática. Não dá sensação de conforto, bem-estar e nem parece pertencente à casa. Há pouca luz, ausência de janelas ou janelas muito pequenas (o que inspirou o nome do filme). Sempre uso o exemplo da ‘entrada de serviço’, que existia na casa grande colonial e continua existindo nas casas e apartamentos modernos”.

Além das semelhanças estruturais, há semelhanças simbólicas na relação da empregada que reside na residência e as mulheres escravizadas. “Precisamos refletir: quem são as pessoas que ocupam esses lugares e por quê? Mulheres negras foram escravizadas na construção do país e continuam ocupando essas posições de subalternidade até hoje. São questões históricas que fazem com que esse ciclo não se encerre”, analisa.

Ainda que estas mulheres não morem mais nos imóveis de seus patrões, elas normalmente vivem em favelas, periferias. “Se você trabalha em um bairro nobre, seu salário não vai conseguir bancar um aluguel perto e as pessoas acabam indo para as bordas da cidade. O que muda toda sua dinâmica de vida e sua vivência da cidade”, aponta.

E como sair deste ciclo?

Uma afirmativa comum no movimento negro é que não basta ser contra o racismo, deve-se ser antirracista. E ser antirracista é se opor a prática racistas. “Muitas incorporadoras vendem o quartinho de empregada com novos nomes: “quarto de serviço”, “quarto extra”, até escritório. E obviamente tem casas que já foram construídas com o cômodo, mas há um importante papel de questionar as novas casas e questionar esses pedidos” afirma Karoline.

Importante, também, é valorizar e preservar espaços historicamente atrelados à população negra. “A cidade está atrelada à produção de cultura e preservação da história. Uma das formas de pensar mudança perpassa pela ideia de conservar esses patrimônios que têm uma relação histórica com a cultura negra, para que as pessoas conheçam e valorizem a história do país”, afirma Anna Lyvia.

No âmbito político, é importante pensar no desenho de projetos habitacionais e como eles podem refletir uma outra estrutura que não seja necessariamente a de ocupações periféricas. A advogada também lembra da necessidade de regularizar moradias em situações irregulares. “Falo tanto em questão documental como estrutura de moradia. Agora na pandemia, vemos situações de famílias morando em imóveis de um cômodo único, a própria falta de saneamento básico é outro fator. São políticas que passam mais por uma atividade estatal, mas tenho conhecimento de parcerias que a iniciativa privada pode fazer para auxiliar na regularização de localidades irregulares e melhorar as condições de habitação da população”, afirma.

Stephanie Ribeiro, arquiteta e colunista na revista Marie Claire

Stephanie lembra que esse ciclo pode ser quebrado produzindo arquitetura. “Todas as discussões feitas na cidade, pensar o urbano, pensar a arquitetura são muito válidas. A cidade é um espaço de circulação, de troca, que deveria ser o mais democrático possível. Pensar o morar, pensar o viver, pensar as cidades é uma grande responsabilidade. Então temos que ter um olhar crítico e interseccional, assumir o debate público e lembrar que o pensamento urbano, de qualidade arquitetônica, não é apenas estético, é questão de qualidade de vida, bem-estar e bem-viver”. Além disso, há a questão de representatividade e ocupação de pessoas negras em espaços de poder: “Representatividade é uma questão de democratização do pensamento. Precisamos de profissionais ligados à arquitetura, ao mercado imobiliário, discussões urbanas que sejam diversas, que tragam suas perspectivas para o desenho, pra materialidade da cidade. Esse é o ideal para chegarmos em uma cidade de fato mais acessível e democrática. E é uma representação que não é performática. Não é só ter pessoas negras ali porque são negras, mas pessoas negras ativas, pensando, criando e com capacidade de tomar decisões. Isso é super importante. Não tem como conceber uma cidade para pessoas se não soubermos sobre quais pessoas estamos falando. E para isso, precisamos ter  uma visão ampla sobre o outro, mas também uma participação efetiva do outro. Esse outro não pode ser um objeto de estudo, ele tem que se fazer presente nas nossas discussões”, conclui.