Instrumentos públicos e privados para a vitalidade e o propósito das cidades
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Instrumentos públicos e privados para a vitalidade e o propósito das cidades

Trabalho no mercado imobiliário desde 2009 e, ao longo deste período, pude observar uma alteração drástica nas formas, tendências e costumes do segmento. Hoje, não apenas nesse setor, percebemos uma mudança de paradigma naquilo que é valorizado pelo consumidor.

As marcas de sucesso são aquelas que operam com propósito, indo além de seu negócio principal. Na construção urbana não é diferente: as incorporadoras e os empreendimentos que se destacam são aqueles que se diferenciam em conceito, arquitetura e propósito.

Com a pandemia, a necessidade de buscarmos algo a mais e de nos conectarmos com o todo tornou-se evidente. Para o mercado imobiliário, não foi diferente, os stakeholders foram desafiados a reencontrar qual o propósito das cidades dentro do contexto macro.

Afinal, qual é a cidade que queremos?

Para iniciarmos esta análise, gostaria de destacar duas obras importantíssimas acerca do meio urbano: “Carne e Pedra”, do filósofo Richard Sennett, e “Morte e Vida de Grandes Cidades”, da escritora e ativista Jane Jacobs.

Sennett examina a relação entre o corpo humano e o ambiente construído, destacando como os espaços urbanos moldam e são moldados pelo comportamento das pessoas. No livro, ele também discute o papel crucial dos espaços públicos, incluindo as praças, ao longo da história da humanidade.

Por sua vez, Jane Jacobs argumenta que a diversidade de pessoas nas ruas e nos demais espaços públicos contribuem para a segurança e a vitalidade das comunidades através de uma vigilância informal. Assim, as praças desempenham um papel crucial nesse sistema, facilitando os encontros e as interações.

Ao relacionar os conceitos de Sennett com a importância das praças, percebemos que são locais onde o princípio de “olhos da rua” de Jacobs pode ser observado e aplicado. Isso significa que, quando as praças são bem projetadas, tornam-se locais de constante atividade humana, gerando uma vigilância informal que contribui para a segurança e a harmonia dos bairros.

Além disso, as praças são projetadas para se integrarem ao tecido urbano, proporcionando acesso fácil e visibilidade a partir das ruas e dos edifícios ao redor, facilitando a conexão entre os espaços públicos e as áreas residenciais e comerciais, fortalecendo o senso de comunidade e o pertencimento.

As cidades e o mercado imobiliário

E o que isso tem a ver com o mercado imobiliário? Os imponentes muros que circundam muitos prédios não são apenas estruturas físicas, mas também símbolos visíveis dos desafios urbanos. Embora destinados a fornecer segurança e privacidade, frequentemente interferem na vitalidade urbana, afetando a interação social, a acessibilidade e a estética das cidades.

Isso cria divisões que dificultam a integração e interação entre pessoas de diferentes origens e classes sociais, além de reduzir a acessibilidade aos espaços públicos, tornando-os menos acolhedores e frequentados. Ou seja, dividem as pessoas em “de dentro” e “de fora” e minam a coesão social e o senso de coletividade, reforçando a segregação socioeconômica.

Do ponto de vista estético, os muros fragmentam a paisagem urbana, interrompendo a fluidez e a coesão do ambiente construído. Eles criam uma sensação de descontinuidade que prejudica a experiência visual dos moradores e dos visitantes da cidade.

Mesmo que os muros possam ser vistos como uma resposta à percepção de insegurança, não conseguem resolver as causas subjacentes da criminalidade e da violência. Em vez disso, perpetua um ciclo de medo e de discriminação que prejudica o desenvolvimento das comunidades. Assim, o que vemos hoje é uma cidade moldada pelo mercado imobiliário, que priva as ruas de vida e cria uma falsa sensação de segurança para poucos.

A importância dos empreendimentos inclusivos

Em que momento os construtores da cidade se desconectaram do propósito social de construir uma cidade inclusiva? A quem serve o lote incorporado?

O propósito social da cidade, conforme delineado pelos principais autores sobre urbanismo — Jane Jacobs, Jan Gehl, Richard Florida, William H. Whyte, é criar espaços que promovam a inclusão, a equidade e a qualidade de vida para todos os seus habitantes. Isso requer um planejamento urbano que atenda às necessidades básicas das pessoas.

Para alcançar esse propósito, é necessária a colaboração das diversas partes interessadas, entre elas o governo municipal desempenha um papel central na criação e implementação de políticas urbanas que promovam a inclusão social, crescimento equitativo e bem-estar da população. Por outro lado, os planejadores urbanos têm a responsabilidade de projetar espaços urbanos que atendem às necessidades sociais, econômicas e ambientais da comunidade.

Além disso, desenvolvedores e investidores são essenciais na construção de espaços habitáveis, acessíveis e inclusivos, enquanto os residentes e os grupos comunitários desempenham um papel ativo na defesa de seus interesses no desenvolvimento urbano.

Mas como a busca por propósito influencia os responsáveis pela construção da cidade?

O exemplo de Curitiba

Do ponto de vista público, um exemplo significativo vem de Curitiba. Em 2020, a Câmara de Vereadores consolidou regras e instrumentos regulatórios na Lei de Prêmios e Incentivos Construtivos, fornecendo mais segurança jurídica e capacidade de planejamento para os empreendimentos privados. A ideia é estimular o setor imobiliário a construir uma cidade mais adequada para todos, abrindo exceções aos limites da Lei de Zoneamento.

A legislação propõe benefícios para a abertura de áreas públicas em lotes privados, incentivando o uso coletivo desses espaços. Isso inclui a concessão de incentivos como o dobro da área para fruição pública, desde que sejam atendidas condições específicas, como tamanho mínimo da área, localização junto ao alinhamento da via pública e manutenção adequada. Esse incentivo visa aumentar a disponibilidade de espaços abertos para uso comunitário, contribuindo para o desenvolvimento de áreas urbanas mais acessíveis e integradas.

Durante os debates na Câmara de Curitiba sobre a lei, é relevante considerar o contexto em que ocorreram. Entre 2020 e 2021, durante a pandemia, os espaços públicos abertos tornaram-se prioridade para a construção de cidades saudáveis. Diante disso, os gestores públicos buscaram atuar de forma ágil para estimular as mudanças necessárias.

As medidas adotadas durante a pandemia, como os programas de “ruas abertas” e a transformação de estacionamentos em áreas verdes, foram estendidas ou tornadas permanentes em diversas cidades, como Nova York e Bogotá, proporcionando mais espaço para pedestres e ciclistas.

E como concretizar esse propósito social com o mercado imobiliário?

Empreendimentos murados ainda são maioria no Brasil e contribuem para a segregação e a insegurança. No entanto, observa-se uma produção imobiliária que busca resgatar a vitalidade perdida das cidades ao longo da ocupação urbana. Embora essas iniciativas não sejam capazes de resolver todas as questões de segurança, a arquitetura pode promover a vitalidade das localidades e, aos poucos, trazer mudanças significativas.

Sendo assim, entendo que o propósito das cidades encontra um caminho através da concepção de acupuntura urbana de Jaime Lerner. Essa abordagem identifica problemas específicos e aplica intervenções direcionadas e de baixo custo para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos e revitalizar espaços urbanos. A essência da acupuntura urbana é solucionar as dificuldades através de intervenções cirúrgicas e precisas, em vez de grandes e dispendiosas obras de reurbanização.

Considerando essa perspectiva, entende-se que cada lote incorporado pelo mercado imobiliário é uma oportunidade de intervenção em busca de uma cidade melhor. E é assim que atuamos na Weefor, incorporadora que hoje lidero junto a um time engajado com o propósito das cidades, e desenvolvemos cada empreendimento com a responsabilidade e o entendimento de que temos uma oportunidade de construir algo bom para o meio urbano.

O MOVA.WF, localizado no bairro Batel em Curitiba, é o exemplo mais recente da nossa atuação. Dentro do lote privado do empreendimento, será criada uma praça pública que contará com dois comércios integrados pela fachada ativa. Constrói-se, assim, um espaço que promove a inclusão, a equidade, o bem-estar e a qualidade de vida.

Além disso, o empreendimento é um exemplo prático da aplicação da Lei de Fruição, citada anteriormente, que prevê o incentivo ao potencial construtivo proporcional à extensão da fruição pública proporcionada. Dessa forma, em uma microescala, o conceito de Jane Jacobs de “olhos da rua” é essencialmente incorporado ao design urbano, incentivando o movimento orgânico de pedestres pelas ruas e pelos espaços públicos.

Os empreendimentos da Weefor receberam reconhecimento internacional, incluindo o prêmio Iconic Awards do Conselho Alemão de Design, que destacou nossa abordagem holística na produção imobiliária. Ou seja, valorizou o nosso uso da inteligência coletiva para envolver mais pessoas em nossos processos.

Em resumo, acreditamos que os empreendimentos devam ser desenvolvidos por pessoas para pessoas, buscando incorporar uma abordagem “bottom-up”. O resultado disso são empreendimentos que entregam qualidade para dentro, seus moradores, e para fora, a cidade e a comunidade na qual estão inseridos.

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Maria Eugenia Fornea

Fundadora e CEO da Weefor - Graduada em Economia pela UFPR, Engenharia Civil pela PUCPR e especialista em Planejamento e Desenho de Cidades pela PUCPR. Atualmente, dedica seus estudos às cidades responsivas, pela Escola Livre de Arquitetura. Atua há quase 15 anos no mercado imobiliário. É fundadora e está CEO da Incorporadora Weefor e Instituto WF, empresas pelas quais busca recriar o papel do incorporador na cidade.

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